A solidão da vida clínica
Há seis anos, assim como hoje, sentei-me em frente ao computador para escrever sobre o Dia do Psicólogo. Era meu último ano como estudante, último semestre da graduação. Olhos brilhantes e coração palpitante pela expectativa de enfim poder exercer a profissão que tão generosamente me acolheu.
Não fazia a menor ideia do que vinha pela frente. Meus planos não incluíam a clínica como primeira opção. Ainda assim, a experiência clínica era aquela compartilhada no grupo de supervisão do estágio, com rostinhos tão familiares. Vivi os últimos anos da graduação muito intensamente, mergulhada nos estágios e pesquisas e leituras, além de compartilhar momentos de companheirismo com aqueles que estavam tão exaustos quanto eu.
A ideia de Psicologia, pra mim, se fez assim, grupal. Com muitas vozes. Piadas contadas e ouvidas nos corredores da universidade, em tom de alívio e desespero pela iminente transformação do nosso status de estudantes em desempregados.
Por acasos, sincronicidades e vocação, quis o destino que eu me encontrasse na psicologia clínica, dentro da abordagem junguiana. Voltei a residir em minha cidade de origem, onde praticamente ninguém sabe o que significa sincronicidade, e muito menos psicologia analítica/junguiana. Foi um início difícil, com muito perrengue e insegurança. Eu me sentia muito, muito sozinha.
Um dos motivos da solidão era a abordagem. Ainda não contávamos com Meet ou Zoom, encontrar supervisão já era difícil - em grupo então, impossível. Embora o último semestre da graduação tenha sido muito caótico, muito do que me sustentou foi a paixão dos meus colegas. Ouvi-los nas supervisões, com suas angústias e esperanças, humanizava meu sofrimento de jovem terapeuta. O espaço da supervisão, assim como as sessões de psicoterapia, é um misto entre função materna e paterna. Há orientação, direcionamento, puxadas de orelha, mas também há colo, compartilhamento de afeto.
Aproveitei as oportunidades que tive de encontros em grupos de estudo e outros formatos, e tenho certeza que esses momentos recarregaram as minhas energias. Às vezes, tudo o que precisamos ouvir é que é difícil mesmo, que a angústia é genuína, que estamos fazendo tudo o que podemos, e que sustentar esse sofrimento é o que nos resta. Porque a vida clínica pode ser muito solitária, e normalmente é. Atendendo online ou presencialmente, a única pessoa que te acompanha do primeiro ao último paciente da semana é você mesmo. E é possível supervisionar alguns casos, trocar ideias com colegas, mas não é possível ser acompanhado nas dezenas de horas de trabalho.
Na verdade, há companhia. Mas é uma companhia que se altera hora após hora. E a cada paciente, assumimos uma postura diferente, somos uma nova versão de nós mesmos.
Um outro ponto que desperta solidão (e também insegurança) é que nosso trabalho não segue à risca as leis da causa e efeito. Para que uma transformação significativa aconteça, são horas e horas de atendimento clínico, e muitas vezes demoramos para ver o resultado das intervenções, e que também depende de muitos outros fatores que nos ultrapassam. Então, diferente dos profissionais que possuem um chefe para lhes dar feedbacks, ficamos no escuro, quietinhos, prestando atenção nos mínimos detalhes. O questionamento sobre a efetividade do nosso trabalho às vezes nos tira o sono.
E é assim mesmo, ter muita certeza das coisas na clínica não é bom sinal. O desconhecido precisa nos acompanhar. Com cinco, quinze ou vinte anos de prática clínica. Sabe como eu sei disso? Ouvi essas angústias de muitos profissionais mais experientes, e isso acalmou meu coração.
Diante da potencial solidão da clínica, precisamos saber aproveitar os encontros que a vida nos proporciona para ouvirmos os relatos dos colegas e humanizarmos a nossa prática. Enxergo nossa vocação como algo que é lapidado enquanto nos lapida. A clínica nos transforma, e de uma maneira longitudinal, é um retrato não somente de nossa evolução profissional, mas também do desenvolvimento da nossa personalidade.
Comemorar esse Dia dos Psicólogos traz o mesmo frio na barriga e quentinho no coração de 2017, mas por motivos diferentes. Hoje, residindo novamente na cidade em que me graduei, retomei o contato com amigos e colegas da Psicologia e encontrei por aí outros apaixonados pelo Jung, que trazem luz à minha caminhada.
Além disso, tenho o orgulho de fazer parte do Instituto Psiadi, que proporciona um ambiente de trocas e conhecimento dentro da Psicologia Analítica - e pra mim, também é sinônimo de casa e afeto. Temos um comprometimento sério e leal com a formação de cada um que traz consigo os sonhos na bagagem. Conectamos pessoas de várias partes do Brasil, cada um com seus objetivos pessoais e profissionais, e pertencer a isso é mágico e restaurador. A cada contato com aluno ou cuidado com os bastidores da pós graduação e dos eventos, penso comigo mesma: cara, o que estamos fazendo é muito legal!
Embora seja ambiciosa com esse projeto, meu objetivo é simples: proporcionar conhecimento e companhia para os colegas que se encantaram, assim como eu, por essa profissão tão rica de significado.
Finalizo o texto com um trechinho escrito pela Rebeca universitária, lá em agosto de 2017:
“Já cheguei a pensar que escolhemos a profissão mais difícil do mundo, pois acolhemos com as duas mãos aquilo que há de mais triste, mais obscuro, mais perverso no ser humano. Mas na verdade, descobri que escolhemos a profissão mais gratificante de todas – acolhemos também esperança, transformação e a mais sincera busca pela felicidade.”
Feliz Dia do Psicólogo! Espero te ver na palestra sobre a Individuação do Psicoterapeuta, nesse sábado, dia 26/08, às 14h, online e via Zoom.
Segue link pra inscrição, corre que ainda dá tempo:
https://www.psiadi.com.br/checkout-onepage/id39/palestra-psicologia-e-vocacao
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Rebeca Moreira Nalia é especialista em Psicologia Junguiana
(PSIADI-UNINGÁ – 2021). Graduada em Psicologia pela Universidade do
Sagrado Coração (2017). Atua como psicóloga clínica desde 2018
(atendimento de adultos e idosos), supervisora, professora e mediadora
de grupos de estudos voltados para a Psicologia Analítica. Desde maio de
2022 faz parte da equipe do Instituto Psiadi, que promove cursos
focados no paradigma junguiano e diálogos interdisciplinares.
Contato: [email protected]
Instagram: @psico.beca